quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Bonequinha de Luxo e os Signos

Com o objetivo de demonstrar como pode ocorrer o consumo a partir de objetos vistos nos filmes, apresento uma breve análise do filme “Bonequinha de Luxo”.

Em 1961, Blake Edwards filmou a adaptação da novela homônima de Truman Capote “Breakfast at Tiffany´s”. Existem no filme alguns elementos que podem funcionar como signos de acordo com o contexto em que estão inseridos no filme. Serão analisados que elementos são esses e porque se tornam signos de acordo com o modo em que foram inseridos nas imagens, sua função como agentes influenciadores e como isso pode motivar o consumo pelo seu espectador.
O filme começa quando, Holly Golightly (personagem de Audrey Hepburn) desce de um táxi na 5th Avenue e toma o café da manhã na frente da Tiffany´s, e estão em cena quase todos os elementos-chave do filme que se tornaram sinônimos de elegância até os dias de hoje e assumem sua função de signo dentro do filme. Neste primeiro plano, a personagem caminha com elegância na calçada da joalheria, a mais famosa do mundo, com jóias que são o sonho de consumo de muitas mulheres - e às quais poucas têm acesso – e, enquanto saboreia um croissant e toma um café, observa as jóias expostas na vitrine. Trajando o célebre vestido preto assinado por Givenchy, consagra uma das cenas clássicas do cinema e, ao mesmo tempo, a peça de roupa fundamental no guarda roupa de toda mulher.
Os acessórios que fazem parte do visual são um colar de pérolas, e brincos grandes e brilhantes, grandes óculos escuros, luvas, chapéu, bolsa e sapatos pretos, formando um conjunto harmônico em preto e branco que, além de complementarem o figurino, conferem requinte e elegância. O penteado (um coque banana no cabelo com balayage e um enfeite brilhante no alto da cabeça) – assim como outros elementos – é o mesmo que aparece em quase todo o filme, mesmo na cena seguinte em que ela acorda em seu quarto ainda há vestígios do coque e as mechas aparecem bem evidentes.
Analisando o período, percebemos que na década de 60, os penteados seguiam um padrão, geralmente eram cortes retos, bem escuros ou claros, porém de aspecto natural. O estilo apresentado no filme fugia do tradicional utilizado na época, e isso muitas vezes pode funcionar como estratégia para chamar a atenção pois, apesar das primeiras reações serem de espanto e choque, nas reações seguintes pode estar a reprodução do que foi visto. Pode-se observar como mesmo depois de quase meio século ainda é comum o uso do coque, um penteado simples e ao mesmo tempo sofisticado. Mais comum ainda é o uso dos cabelos coloridos, hábito da maioria das mulheres, assim como o balayage que também foi adotado por muitas delas, desde as mais jovens até as mais maduras. De acordo com pesquisas realizadas pelo portal Minha vida, atualmente, 65,5% das mulheres tingem o cabelo, o que está entre suas maiores preocupações relacionadas a estética.
Os óculos escuros, além de funcionar como complemento para o conjunto, pode ser percebido pelo espectador de diversas formas: a personagem, de incontestável beleza, é admirada pelos seus fãs pelo seu talento e também pela sua beleza, ambos atributos possuídos por ela, porém não pelo seu espectador que, contudo, almeja isso para ele mesmo. Uma das razões do público (consumidor em potencial) associar o objeto óculos escuro a um motivo de uso é o fato de que a atriz, no modo como é mostrada na tela, é um ser desprovido de características negativas, diferente do público em sua vida de trabalho e preocupações, que vai ao cinema e vê Audrey Hepburn vestida de preto com óculos escuros bem grandes capazes de disfarçar possíveis imperfeições (olheiras, por exemplo) e emprestar um pouco da beleza da atriz àquele que o possui. A própria atriz teria dito em entrevista que toda mulher poderia ficar parecida com ela “mudando um pouco seu penteado, comprando óculos de sol grandes e usando vestidinhos sem manga”, ou seja, encorajando os fãs a consumirem “seus” produtos.
No entanto, o mais marcante de todos os elementos é o emblemático vestido preto de Givenchy, que se tornou o símbolo mais forte do filme, no qual, o estilista “consagraria os grandes óculos escuros, o tubinho preto e os acessórios do filme como sinônimos de estilo”. Salvo em poucas exceções, na maior parte do filme, a roupa utilizada pela personagem é o preto que ela usa em várias ocasiões, dia ou noite e está sempre adequada a todas as situações e bem vestida. A maioria das revistas de moda voltadas ao público feminino aponta o “pretinho básico” como símbolo de elegância e uma roupa que deixa a mulher pronta para todas as ocasiões – exatamente o que ocorre no filme.
Essas revistas também apontam o vestido preto como aquele “capaz de dar a toda mulher um ar mais refinado”, democrático na criação de “visuais diferentes”, “disfarça imperfeições, alonga a silhueta” e “destaca os acessórios e o penteado” (Revista Manequim, nov. 1999). Ou seja, além da elegância proporcionada, tais atributos são acessíveis a qualquer mulher, mesmo as que estão fora do peso, pois o vestido preto pode até mesmo disfarçar este fato.
Um fato interessante é que no começo do século, a roupa preta era vista como roupa de luto, porém nos anos 20, Coco Chanel – estilista de grande influência – já aconselhava as mulheres a terem sempre no guarda roupa um “pretinho”, mas foi a partir da década de 60 que “os tubinhos pretos que ela usou em cena – assinados por Givenchy, seu costureiro predileto – se transformaram, a partir de então em peças quase obrigatórias no guarda-roupa de toda mulher”.
Todos esses elementos são objetos comuns, como muitos dos que se vêem nas lojas, porém o cinema além de realçá-los, cria situações que o tornam especiais. A personagem é jovem, independente e vive sozinha – características incomuns na década de 60, quando foi lançado o filme. O fato de morar sozinha gera um consumo diferente do consumo de uma família, uma dona de casa não tem tantas preocupações com a vaidade como uma mulher que vive sozinha, podendo gerar um consumo mais voltado à beleza. A consumidora que assiste no cinema a um filme sobre uma garota com uma vida aparentemente perfeita sonha em obter o mesmo, sente o desejo de viver a vida de Holly e os objetos que aparecem no filme são os elementos que a proporcionam essa vida.
É quando surgem as motivações que ocasionam o consumo de objetos ligados ao filme: toda a vida de Holly - apesar de alguns momentos de conflito - é uma vida de sonhos, sonhos que não podem ser alcançados de outra forma senão através da visualização na tela do cinema e da aquisição de objetos que causem essa sensação ilusória. O vestido já citado, por exemplo, é simples porém elegante, e conta com a assinatura do famoso estilista e o apoio das revistas de moda que garantem beleza e elegância e o poder de disfarçar possíveis imperfeições. A promessa que vem com ele é a da beleza de Audrey Hepburn, que pode ser obtida através do uso de um vestido apenas.
O preto, presente em quase todas as cenas funciona como símbolo de um status que a personagem não possui de fato, mas insiste em simular e que pode ser obtido através da aparência – e, realmente, Holly convive com pessoas da alta sociedade embora ela mesma viva num pequeno apartamento quase sem mobília. Todos os seus gestos elegantes são apoiados em pequenos objetos, acessórios ou o modo como eles são apresentados.
O impacto do vestido foi tão grande que se refletiu aos dias de hoje. Em dezembro de 2006 (45 anos depois do lançamento do filme), o vestido preto que Hepburn usou em cena foi vendido em um leilão por mais de US$ 800 mil (cerca de R$ 1,7 milhão), o maior valor já pago por um objeto utilizado no cinema. De acordo com o site de notícias bondenews, antes disso, “o preço mais alto dado anteriormente em um vestido foi o usado por Marilyn Monroe para cantar no aniversário do presidente John Kennedy”.
O cigarro foi outro ponto incomum para a época, e aparece no filme usado com elegância, com o apoio da piteira, que também se tornou um sinônimo da personagem. O modo como segura o cigarro e o apóia no canto da boca enquanto conversa e sorri, associados ao carisma da personagem fazem com que todos as suas qualidades sejam atribuídas em parte pelo uso deste.
O ato de fumar era uma característica exclusiva do sexo masculino até a II Guerra Mundial, porém, ainda assim, as mulheres que fumavam eram as prostitutas e as atrizes. No início da década de 50, um outro fator contribuiu para disseminar o consumo de cigarros entre as mulheres: o cigarro no cinema. Em 1946, quando Rita Hayworth interpretou “Gilda” nos cinemas, não era apenas o cigarro que estava na tela, ele vinha acompanhado de uma bela mulher, num belo vestido brilhante com muito charme e elegância.
Audrey Hepburn conseguiu efeito semelhante e sua piteira longa se tornou um ícone e tornava o ato de fumar uma atitude chique e refinada, fazendo com que muitas mulheres adotassem esse hábito tipicamente masculino até então. O aumento do consumo do cigarro entre o público feminino se iniciou na década de 50 e desde então só aumentou. Segundo estudos de motivação realizados por Dichter, “o cigarro cumpre igualmente um papel social (...) ao mesmo tempo em que ele serve de apoio para a troca interpessoal. Ele confere uma personalidade ao fumante, ressaltando sua ação com relação aos demais.” (Karsaklian: 2000, p. 33)
Todas as situações do filme estão impregnadas de algum tipo de sentimento, sejam momentos divertidos, romances, ou até tristeza – sempre superada com um momento seguinte de felicidade – os sentimentos estão ali sempre criando situações que possam transmitir ao público uma positividade. Os objetos em cena são automaticamente associados ao mundo idílico, perfeito que é mostrado na tela, fato que não é percebido claramente pelo espectador já que o mesmo é atingido diretamente em sua subjetividade. Cada plano oferece ao espectador um objeto de desejo imaginário (uma relação inconsciente) que se concretiza no produto adquirido.
Os recursos técnicos do cinema também são responsáveis por este processo pois eles vão aumentar a participação afetiva do espectador, fazendo com que ocorram processos de projeção-identificação. Um exemplo claro de identificação, por exemplo, ocorre quando o espectador se identifica com o tipo físico, cor dos cabelo ou olhos de um ator e, a partir daí, o uso de acessórios complementariam estas semelhanças observadas.
Ao longo da história do cinema, existem vários casos de atores/atrizes com sua imagem diretamente associadas a um objeto ou marca. São os casos de Audrey Hepburn / Hèrmes, Marlon Brando / camiseta branca, Marilyn Monroe / Chanel assim como, em casos mais recentes, Nicole Kidman estrelando campanha da Chanel, Scarlett Johansson para Louis Vitton e a própria Audrey Hepburn em cena de Funny Face para a GAP.
A imagem do ator confere ao produto uma garantia de qualidade, além de remeter às suas características como personagem. Tornando-se assim um importante agente influenciador, sendo usado com freqüência como um instrumento de publicidade capaz de vender qualquer tipo de produto.
É possível estabelecer uma relação de signo com as imagens propostas, a partir do momento em que os objetos apresentados na tela realmente não são simples objetos. De acordo com Jean Baudrillard, eles não se resumem ao seu valor de uso e troca que seriam finalidade e preço, respectivamente. Devido ao seu valor de signo, ao proprietário é atribuído um valor de status que é justamente o fator determinante do consumo em si.
Assim, o processo de personalização é definido conforme a relação entre o indivíduo e seus objetos. Todo o figurino é constituído pelos signos que geram o sonho de consumo que é o estilo de vida do personagem, atribuído ao mesmo através de seus objetos.
A forma de se vestir é um fator diretamente ligado ao comportamento. Assim, cada objeto mostrado é associado à cena em que ele se situa e isso é percebido inconscientemente pelo espectador. O desejo despertado por aquele produto existe porque o mesmo foi associado à atriz, à cena em que ele foi inserido, à situação que a personagem vive. Tudo isso se converte num ambiente propício para que se desenvolva uma identificação com o que é mostrado e tudo que é visto na cena tem influência significante durante o processo de compra, o qual será baseado em lembranças do filme.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Cindy, The Doll is Mine

Bertrand Bonello, França, 2005




Cindy, The Doll Is Mine partiu de uma encomenda pela cadeia de TV France 2 dentro da coleção “Les Films Plastiques” em que vários cineastas fariam curtas-metragens inspirados em artistas ou obras de arte contemporâneas. Bertrand Bonello inspirou-se na fotógrafa americana Cindy Sherman, que se tornou reconhecida mundialmente por público e crítica especialmente nos anos 70, com Untitle Film Stills, uma série de fotos em preto e branco em que ela mesma interpretava atrizes de filme B americano. Em um trabalho posterior, The Sex Pictures, não é mais à si mesma que ela fotografa e sim bonecas despedaçadas em posições de apelo sexual.
A partir destas informações, podemos observar as referências a estas fases do trabalho de Sherman desde o primeiro plano, onde vemos várias bonecas, algumas com partes faltando, outras inteiras. Então, somos apresentados às duas personagens (ambas interpretadas por Asia Argento): uma fotógrafa morena, de cabelos curtos, sem maquiagem, vestindo roupas masculinas e – o oposto - uma modelo de cabelos longos e muito louro (quase branco), usando um vestido tipo “boneca”, transmitindo uma imagem bastante ingênua.
A fotógrafa vai orientando a modelo a seguir várias posições, mas nenhuma delas parece satisfazer, não importa o que a modelo faça. Até que ela pede que a modelo chore, pois acha que isso poderá comovê-la. Da pilha de bonecas, escolhe uma sem pernas e entrega à modelo, que a segura chamando de “minha bonequinha”; mas, como ainda não conseguem atingir o objetivo, decidem fazer uma pausa. Depois dessa pausa, a modelo diz que consegue. De vários CDs jogados no chão, escolhe a banda novaiorquinha Blonde Redhead e começa a tocar “Doll is mine”. Agora há só a música e o comovente choro da modelo.
A sinopse do filme anuncia que “é a história de uma morena que tira fotos de uma loira e as duas estranhamente se parecem”; porém, num filme sobre uma sessão de fotos, nenhuma foto é tirada, o que interessa no filme de Bonello não são as eventuais fotos e sim a relação estabelecida entre a câmera e o objeto a ser fotografado. A insatisfação da fotógrafa diante das posições que ela mesma sugere, mostra que ela também precisa ser sensibilizada.
Em seus trabalhos, Sherman fotografava a si mesma, nem por isso fazendo auto-retratos. Ela dizia que os expectadores deveriam procurar a si mesmos ou outras pessoas nas imagens, e não ela. O duplo existente nos trabalhos de Sherman também estão no filme: quem é Cindy em suas fotografias? Quem são todas as mulheres que Cindy representou se não são ela mesma? No filme, a mesma atriz representa diferentes personagens: uma fotografa e outra se deixa fotografar.
A modelo chora, se ajoelha e se entrega ao que lhe foi pedido. À visão da sua maquiagem borrada, da emoção que seu choro transmite, quem chora é a fotógrafa, que não tira uma foto sequer. A ela nada mais resta além do seu próprio choro. E, ao expectador, nada mais se faz necessário.


quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Juno

Juno, Jason Reitman, EUA / Canadá / Hungria, 2007




Juno surge de um argumento aparentemente simples: Juno MacGuff (Ellen Page) é uma adolescente de 16 anos que fica grávida na primeira vez com o namorado Bleeker (Michael Cera). Parece simples, e é. E esse é um dos maiores trunfos de Juno, sua simplicidade.
Desde o princípio, a protagonista não parece se importar muito com a sua situação (ela sempre se refere ao bebê como “isso”, “a coisa”). Primeiro ela se confronta com o fato de levar adiante ou não a gravidez. Quando a decisão é tomada, ela precisa se preocupar com o destino do bebê. É quando surgem Mark (Jason Beitman) e Vanessa (Jennifer Garner), os pais adotivos encontrados por Juno e sua amiga Leah (Olívia Thirlby).
O casal escolhido tem boas condições financeiras mas estão em uma relação delicada pois Mark não está seguro do que é ou do que quer ser (o estilo de vida que ele leva aparentemente é imposto por Vanessa já que ele ainda não se desprendeu totalmente da fase adolescente) e Vanessa tem 100% de certeza do desejo de ser mãe - o que por vezes chega a ser irritante, mas seu desejo é sincero e é a mesma sinceridade que Juno sente ao vê-la brincando com a filha de uma amiga no shopping: ela sabe que desde o começo o bebê “sempre foi dela”.
Mas o filme, assim como a própria Juno, não quer discutir a gravidez ou a adolescência, ou ambas: Juno é simplesmente uma adolescente com todas as suas confusões, ela demonstra isso quando diz ao pai “I don´t really know what kind of girl I am” (“Eu não sei exatamente o tipo de garota que sou”). É durante o filme - que se passa ao longo da sua gravidez - que se desenvolvem suas dúvidas sobre o amor, os relacionamentos e como eles se sustentam. Quando ela passa a se perguntar se duas pessoas podem ficar juntas para sempre é quando as coisas começam a ficar mais claras pra ela e para o expectador.
O texto de Diablo Cody (que já foi stripper, blogueira e operadora de tele-sexo) é afiadíssimo e se encaixa perfeitamente em cada um dos personagens, conseguindo extrair humor desde as cenas (que pelo menos deveriam ser) mais tensas - como quando Juno resolve contar aos pais que está grávida - até as cenas mais triviais.
Juno é deliciosamente divertido (sem o compromisso de o ser) e surpreende o expectador no sentido de que quando você acha que as coisas vão tomar outro rumo, elas vão para um outro lugar que nunca é o que se espera, e tudo isso sem fazer reviravoltas desnecessárias. Com sensibilidade e inteligência dosa o humor e o drama sem ser apelativo ou meloso.
A trilha sonora mescla clássicos como David Bowie, Lou Reed e The Kinks aos moderninhos do Belle & Sebastian e Cat Power. A trilha se encaixa perfeitamente em todas as cenas, tornando o filme ainda mais agradável e transmitindo exatamente o clima de cada cena.
Como uma produção independente - com orçamento de aproximadamente US$ 7,5 milhões - Juno conseguiu 4 indicações ao Oscar (Melhor Filme, Direção, Atriz e Roteiro - levou o de melhor roteiro). Sua simplicidade e bom humor, que se sustentaram nas mãos da direção competente de Jason Reitman (de “Obrigado por Fumar”), tornaram Juno um grande filme, mesmo sem a pretensão de o ser.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Cabra Marcado Para Morrer

Eduardo Coutinho, Brasil, 1984.


Cabra marcado para morrer” é um documentário de inegável importância para a cinematografia brasileira. O filme de Eduardo Coutinho além de trazer intervenções estéticas em termos de linguagem de documentário, levou para as telas a história de uma família marcada por tragédias e sofrimentos durante um período crítico da nossa história política.
A partir da história pessoal de cada um dos personagens, o filme vai traçando um panorama de vários momentos da história, ao mesmo tempo em que denuncia a luta dos camponeses pela reforma agrária e as injustiças e desigualdades sociais as quais o povo é submetido. Sendo assim um importante filme político, a partir do momento em que questiona políticas sociais e do governo, ou seja, as ações humanas que, em si, são políticas.
Em 1962, Coutinho era membro do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE Volante que percorria o país com o objetivo de promover a discussão da reforma universitária. Em abril, os estudantes chegam à Paraíba, duas semanas depois do assassinato de João Pedro Teixeira - fundador e líder da liga camponesa de Sapé - por ordem de latifundiários. Tais ligas camponesas eram criadas desde os anos 50 com o objetivo de conscientizar o trabalhador rural e defender a reforma agrária.
Eles se dirigem à Sapé e, no dia seguinte a chegada, há um protesto contra o assassinato de João Pedro onde Coutinho conhece sua viúva, Elizabeth Teixeira. A partir daí surge a idéia de fazer um filme de ficção sobre a vida e a morte de João Pedro na luta pela reforma agrária, em que os camponeses do local, Elizabeth Teixeira e seus filhos representariam seu cotidiano em frente às câmeras interpretando seus próprios papéis. As cenas seriam filmadas nos locais reais e com os participantes reais (não-profissionais) da história.
Dois anos depois, com o roteiro pronto, começam as filmagens, mas um conflito na região, envolvendo policiais, funcionários de uma usina e camponeses, resultou na morte de 11 pessoas e a ocupação da região. As filmagens são então transferidas para o Engenho da Galiléia (PE) - onde havia surgido a primeira liga camponesa do Brasil. Os atores eram escolhidos entre os camponeses locais. Dos antigos atores, só Elizabeth interpretaria ela mesma.
Mas as filmagens são novamente interrompidas quando, logo após o golpe militar de 64, militares invadem o local a procura de “subversivos” e o equipamento de filmagem, um “vasto material subversivo (...), filmes para a formação agitadora dos camponeses” (como foi veiculado na imprensa) é todo apreendido. Porém, parte do material filmado já havia sido enviado para o laboratório no RJ o que permitiu que fosse recuperado posteriormente. Alguns membros da equipe foram presos e outros se esconderam na mata, fugindo no dia seguinte.
A partir daí, com o controle do país nas mãos dos militares era impossível realizar qualquer filmagem, qualquer agitação popular era considerada subversão. Os profissionais que trabalhavam no filme são obrigados a fugir, Elizabeth Teixeira vira Marta Maria da Costa e foge com o filho Carlos para uma cidade do Rio Grande do Norte e seus filhos se dispersam pelo país como refugiados e são criados por parentes.
Com a abertura política comandada pelo General Figueiredo, 17 anos depois, Coutinho volta aos mesmos locais numa tentativa de reencontrar seus personagens. Desta vez não há roteiro, há a curiosidade de saber o que aconteceu com as pessoas, projetar as imagens que haviam sido filmadas na época e a intenção de retomar o projeto. Assim, inicialmente, ele faz um filme sobre o filme interrompido (que era uma ficção baseada em fatos reais), em que ele ao mesmo tempo em que conduz a história, é um dos seus personagens, conversa com a equipe e com os personagens: participa dos dois lados da história, na frente e por trás das câmeras.
O primeiro local a ser visitado é Galiléia, o diretor reencontra os camponeses, conversa, quer saber do que eles lembram – e nós acompanhamos todo o trajeto. À noite, são projetadas as imagens que haviam sido filmadas e salvas e o que mais chama a atenção dos moradores é o fato de se reconhecerem na tela mais jovens.
Depois o diretor sai em busca de Elizabeth e seus filhos. Abraão (o mais velho) conduz a equipe até Elizabeth que, ao virar Marta, tenta recomeçar sua vida, mas nunca esquecendo a eterna luta pelos direitos dos trabalhadores. Depois da retomada do filme, de concordar a ser filmada, volta a ser Elizabeth, sai da clandestinidade e reencontra alguns de seus filhos. E nós acompanhamos tudo isso pelas lentes da câmera – o filme que interfere na realidade. Como observa Avellar, o filme é “...uma ficção com vontade de ser documentário, um documentário com vontade de ser ficção.”
Depois do inesperado reencontro, conversa com Coutinho e vai contando a história da sua vida. Fala do filho de 11 anos que levou um tiro três meses depois do pai ser assassinado, a filha que oito meses depois se suicida - sendo este um dos momentos mais carregados dramaticamente no filme. No primeiro dia foi a surpresa, ela fala do passado, relembra o sofrimento no dia da morte de João Pedro. No dia seguinte, ela reconhece que se emocionou e “não falou direito” e então relembra desde o começo de como conheceu João Pedro até sua trajetória política.
Outro depoimento marcante é o de João Mariano (que interpretaria João Pedro no filme de 64) ele era o único que não pertencia ao Engenho da Galiléia e não tinha participação no movimento camponês mas, como estava sem trabalho, acabou entrando no filme e logo se identificou com a história de João Pedro, pois também se encontrava ameaçado de morte. Logo no começo da entrevista, Coutinho comenta que o vento pode estar atrapalhando o áudio e à interrupção do diretor segue-se o silêncio de João Mariano, como se hesitasse em falar, mas depois de um silêncio, ele começa a falar de sua experiência com o filme.
Há os depoimentos dos filhos: Manoel (que estava com o avô) apesar de não ter lembranças da família, nem fotografias, refez o túmulo do pai que havia sido destruído. O filho (José Eudes) conta que nem sequer chegou a conhecer alguns irmãos, mas que sempre pensa na família em tudo que aconteceu.
Assim, o filme de 84 vai buscar na memória de seus personagens de 64 os fatos da época, as lembranças de tudo que aconteceu e deixou marcas permanentes na vida de cada um. Se, a princípio, os fatos seriam reconstituídos em forma de ficção, agora são reconstituídos através da memória. Os depoimentos dos personagens que recontam o passado são entrecortados pelas imagens que puderam ser salvas em 64.
O filme de Coutinho além de retratar uma história – ou um período histórico – também sofreu suas conseqüências e foi alvo das injustiças da época, ele mesmo fazendo parte da história que conta.
Os assassinos de João Pedro foram descobertos: dois soldados da polícia militar e um funcionário de fazendeiro. O mandante era latifundiário e, ao assumir uma cadeira na Assembléia Legislativa ganhou impunidade. Um deputado e quatro suplentes renunciaram para permitir a sua posse, encerrando o processo. Os executores foram julgados e absolvidos jogando mais um caso na impunidade.
No final do filme, em sua última fala, Elizabeth denuncia: “A luta não para. A mesma necessidade de 64 está traçada (...) do operário, do homem do campo. A luta não pode parar. Enquanto existir fome e salário de miséria o povo tem que lutar (...). É preciso mudar o regime, a democracia (...) democracia sem liberdade? Democracia com salário de miséria? Democracia como filho do operário sem direito de estudar?” É o retrato de uma realidade registrada há 24 anos e que, infelizmente, permanece atual.

sábado, 20 de setembro de 2008

Encontros e Desencontros

Lost In Translation, Sofia Coppola, EUA, 2003


Todo o clima de melancolia já visto no filme anterior de Sofia Coppola (Virgens Suicidas) está presente em seu segundo filme. Novamente um clima de deslocamento, a sensação de não pertencer ao lugar que se ocupa.
Os personagens: Bob (Bill Murray), um decadente astro americano de filmes de ação e Charlotte, uma jovem recém formada acompanhando o marido fotógrafo (Giovanni Ribisi). Não há necessariamente um roteiro a ser seguido ou uma história a ser contada, os personagens apenas existem, estão lá e as situações vão tomando o seu lugar pouco a pouco, observando as ruas da cidade enquanto nós assistimos sua solidão.
Em Tóquio, confrontando-se com a cultura japonesa, um idioma desconhecido, a tecnologia e as luzes da cidade em constante movimento, há a dificuldade de se adaptar e a solidão que toma conta dos personagens. O choque entre as duas culturas (americana e japonesa), confere ao filme um tom humorístico, especialmente a ironia com que são retratados os artistas de Hollywood (representados no filme pela personagem de Anna Farris).
O clima de solidão se faz presente a todo o tempo, desde quando se está efetivamente sozinho ou mesmo entre a multidão, em boates, bares e festas. Mas, em “Encontros..”, o silêncio se basta. Entre Bob e Charlotte não há necessidade de palavras. Entre eles o silêncio fala mais. As palavras se traduzem em risos, olhares, toques, abraços. É um filme de gestos, de expressões. Murray foi escolha perfeita para o papel de Bob - e também o responsável pelas cenas mais cômicas do filme. Johansson é um retrato perfeito da solidão ao caminhar sem rumo pelas ruas de Tókio.
Distância e proximidade se chocam todo o tempo. Ambos têm a sensação de estarem perdidos (isso fica ainda mais claro no momento em que eles conversam deitados na cama do quarto de hotel). Charlotte precisa se encontrar. Bob também. Ou que alguém os encontre. Eles encontram um ao outro e se perdem no meio da multidão.
E no meio de tantos paradoxos fazem-se evidentes as qualidades de Sofia como diretora, desde seu trabalho anterior (As virgens suicidas, 1999) e agora neste, demonstrando sinais de uma crescente maturidade. A cena final, resume em si toda a atmosfera do filme, num sussurro de Bob ao ouvido de Charlotte, incompreensível ao espectador. E não há necessidade de compreensão, como acontecia desde o primeiro encontro, Bob e Charlotte se entendem e nós os contemplamos apenas.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

São Paulo Sociedade Anônima

Luis Sergio Person, Brasil, 1965.

São Paulo Sociedade Anônima surge fácil em qualquer lista de melhores filmes brasileiros. Trata-se do primeiro filme de Luis Sergio Person a ser exibido nos cinemas, embora seu primeiro trabalho a ser filmado tenha sido “Marido Barra Limpa”.
O filme se passa entre os anos de 1957 a 1961, período de euforia desenvolvimentista: o governo de J.K. incentivando a instalação de indústrias estrangeiras no Brasil. E também o período entre os 25 e 30 anos da vida do protagonista Carlos, interpretado por Walmor Chagas. Logo no primeiro plano, sente-se a opressão de uma cidade como São Paulo sobre as pessoas: durante a briga entre Carlos e Luciana (Eva Wilma), os vidros da varanda impedem que se ouça as vozes, mas refletem os prédios em volta. Não há como fugir deles quando se está em São Paulo. Eles são o reflexo dos vidros e a paisagem das janelas.
Seguem-se os créditos que mesclam a música de Claudio Petraglia a imagens de São Paulo. O que vemos depois são flashbacks de Carlos que, após abandonar a esposa, caminha sem rumo pelas ruas de São Paulo. A narrativa é não-linear, a montagem de Glauco Mirko Laurelli faz com que tudo ocorra em fluxo de consciência, à maneira do Resnais de “O ano passado em Marienbad”. Carlos vai relembrando fatos do passado, lembranças de mulheres com as quais se envolveu, como Ana (Darlene Gloria) e Hilda (Ana Esmeralda).
A primeira, representação do amor carnal, é uma modelo interessada somente por homens ricos. Ana deseja lanchas, jantares e é criticada por isso. A segunda é cheia de desejos e ansiedades que no fundo só servem para esconder o vazio dentro dela, escondendo em festas suas frustrações e carências. Das mulheres com que se envolve, só Hilda não fala em dinheiro, embora também goste do conforto. Luciana deixa claro logo na noite em que é pedida em casamento que faz questão de viver em boas condições financeiras.
Na manhã de ano novo, depois de ter estado em festas lotadas de gente e ter se isolado em cantos (Carlos se mostra um solitário, não vemos presença de sua família ou amigos, só as mulheres com as quais se envolve) ele se dirige ébrio à casa de Luciana e, enquanto grita seu nome, fala em “recomeçar tudo em ordem”. A ordem que mais falta na rotina caótica do paulistano. As frases tem de ser repetidas várias vezes numa tentativa de torná-las reais.
Carlos não se mostra muito superior a nenhuma de suas mulheres. Sempre introspectivo, carrancudo, mau-humorado e resmungando, acaba se casando com Luciana “por cansaço”, “por preguiça de procurar algo melhor”. O casamento acaba sendo pra ele o equivalente ao emprego. Vai deixando que as coisas aconteçam como elas parecem predestinadas a ser, progredindo e se estabilizando e vivendo o que a ele foi destinado, assim como a todos os jovens da classe média.
Trabalhando com Arturo Carrari (Otelo Zelloni) tem a chance de prosseguir e progredir, ganhando cada vez mais dinheiro, mesmo que não seja do modo mais honesto – na base do sorriso, da camaradagem, nos “contatos”, regras são burladas, leis não são cumpridas, os trabalhadores não são registrados e assim a fábrica (ou o Brasil) cresce. Arturo é a representação daqueles empresários investindo no Brasil, sempre repetindo “Brasil o país do futuro” e recusando-se a dirigir o carro nacional.
A vida é baseada em trabalho. As máquinas nas fábricas da Volkswagen não permitem esquecer. A rotina conduz ao tédio e tornam sua angustia e frustração crescentes. A busca incessante pelo dinheiro que, aparentemente, move os paulistanos, é o que Carlos mais despreza, a ponto de xingar a esposa por tentar fazer com que ele cresça na empresa (sendo este, o ápice do que Carlos podia suportar). Um moralismo contestador dentro dele não aceita que Luciana faça propostas em seu nome para crescer financeiramente - já que ele próprio luta contra tudo isso.
Aparentemente, um pouco hipócrita, já que ele é parte a burguesia. Quer se livrar disso, mas não consegue, afinal, ele também precisa de dinheiro. Nada disso no entanto, tira o carisma do personagem, nem seu constante mau-humor que, no fundo, representa a angustia de uma classe média vivendo no caos de uma cidade como São Paulo.
Depois de sua fuga frustrada, dirigindo até a Serra do Mar, acaba voltando para as mesmas pessoas, os mesmos prédios, as mesmas placas, os mesmos carros, para o eterno “recomeçar...”. Carlos é – assim como os outros – impotente diante de sua revolta.
Se o cinema novo queria ser contestador, ele o fazia através da perspectiva do nordestino. Person contesta seu próprio povo, contesta o modo de viver da classe média brasileira, dentro de sua própria cidade. Representando a crise da burguesia, conseguiu registrar em imagens a atmosfera de São Paulo e o drama existencial da classe média que persegue o dinheiro e é encurralada pelo concreto.

domingo, 14 de setembro de 2008

O Ano Passado em Marienbad


L'Année dernière à Marienbad, Alain Resnais, França, 1955

“O passado é como noesis (ato da consciência) um “agora” ao
mesmo tempo que um “não mais” como noema (o conteúdo da

consciência); o futuro um “agora” ao mesmo tempo que um
“não ainda” e, por conseguinte,não se deve dizer que o tempo
de escoa da consciência, pois ao contrário, é a consciência que,
a partir de agora, desdobra ou constitui o tempo. E se desdobrando
a partir do seu agora, a consciência é então contemporânea de todos
os tempos, é uma consciência atemporal.” (Lyotard 1967, p 98)

Um luxuoso hotel, repleto de amplos salões, corredores imensos, escadarias e estátuas. Assim é Marienbad. Onde travellings percorrendo a paisagem arquitetônica nos levam a um homem (denominado “X”) que tenta lembrar uma mulher casada (“A”) que eles tiveram um caso em Marienbad.
O texto desta vez é de Allain Robbe-Grillet um dos expoentes do chamado Nouveau Roman (novo romance), movimento que tem como base a fenomenologia de Husserl, Merleau-Ponty e Heidegger e como algumas de suas características a descrição e o desejo de acabar com a dicotomia forma-conteúdo, sendo assim uma crítica à estrutura tradicional dos romances.
Voltando ao “labirinto da memória” de Resnais, o que temos são peças de um quebra-cabeça que é inicialmente desmontado e pouco a pouco nos são dadas as peças ( o que não significa necessariamente que facilite as coisas). O tempo não só não é cronológico, o tempo não existe em Marienbad. Personagens estão ali e logo depois não estão, os diálogos são entrecortados, as vozes vem e vão e não se sabe ao certo quem as pronunciou, há raccords de movimento e a montagem paralela que possui papel fundamental na constituição do tempo (ou na ausência dele).
Todo o filme são dicotomias: ficção-realidade, real-imaginário, diálogos-monólogos, construção-desconstrução. Não sabemos se estamos diante de pessoas-estátuas ou estátuas-humanas. Mas isso não importa no momento em que se assiste o filme, já que estamos presos em algum ponto entre o passado e o presente.
A e X às vezes entram em sintonia mas tudo é ligado por uma linha muito tênue (a memória). A está sempre pedindo explicações (nomes, lugares, porquês...), explicações que para X não tem a menor importância (o Nouveau Roman contestando o romance tradicional).
Nos momentos de entrega de A, suas lembranças vão surgindo através de descrições de detalhes fornecidos por X. Observe-se aqui mais uma influência da literatura: em Proust há o famoso episódio das madeleines mergulhadas no chá cujo sabor evoca lembranças passadas. A narrativa não-linear faz com que tudo seja lembrado em fluxo de consciência – as experiências de Joyce ou Faulkner na literatura são vistas na tela de Resnais.
Foi tudo um sonho? É real? Imaginação do homem? Imaginação da mulher? Desde Hiroshima, Mon amour, Resnais já realizava reflexões sobre a memória. E enquanto nos perdemos entre espelhos e labirintos já nem importa mais saber o que de fato aconteceu no ano passado em Marienbad.